Ninguém pediu! - Resenha de Minha Vida Muito Louca
- Lazara Oliveira
- 30 de dez. de 2021
- 7 min de leitura

Trabalhar na área de telemarketing pode ser enlouquecedor. Ao menos é o que a autora Larissa Cristina nos passa em seu romance ficcional de nome Minha Vida Muito Louca, disponível para compra.
Larissa é uma escritora independente que vem divulgando suas obras através de plataformas digitais, tais como Wattpad e Amazon. O que começou com a escrita de fanfics sobre ídolos pop, se tornou uma jornada de auto descoberta e aceitação, onde, atualmente, a autora vive um bom momento por ter encontrado o coração que faz sua escrita pulsar mais genuína. Li várias obras dessa mesma escritora e minha visão não foi sempre positiva. Expressei anteriormente algumas opiniões, em privado, pois não é necessário fazer de uma sessão de críticas um show de humilhação pública. Larissa foi muito receptiva e escutou com atenção, concordando ou não, e expressando sua visão. Eu já sabia que ela era boa em escrever, mas após uma reformulação, tem se tornado genial.
Não foram as opiniões alheias que evolucionaram a escrita de Larissa, mas a postura em olhar através dos olhos de terceiros e perceber que ela não estava expressando o que realmente queria comunicar a seus leitores. Talvez devido a algumas influências que recebeu ao longo da vida. Todo artista tem suas influências e toda pessoa possui um tanto de olhar sobre a vida que advém de uma noção midiática sobre o mundo, é preciso uma grande dose de senso crítico para mudar isso. Quando ocorre, começa uma magia na coisa toda, um novo processo. Quem conheceu suas obras passadas e não gostou delas, deve dar uma segunda chance.
No livro Minha Vida Muito Louca, a autora, que antes escrevia ambientando nos Estados Unidos, abraça sua brasilidade carioca pela segunda vez - a primeira foi em Por Trás da Máscara - e nos mostra que a vida aqui pode ser tão encantadora quanto a de alguém que passeia pela Times Square com seus sapatos Louboutin enquanto segura um café gelado. Aquele churrasco no fim de semana, na casa da família, ao som de pagode, e de chinelos nos pés, também é fantástico e faz parte de quem somos, nossa vivência, fora de uma visão estereotipada sobre o Brasil.
Esse é um Brasil de brasileires e para brasileires.
A protagonista Beatriz trabalha em uma empresa de nome Power, que faz o trabalho terceirizado de atender a ligações feitas por clientes de uma provedora de energia elétrica. O ambiente de trabalho conta com algumas condições que podem levar teleoperadores ao desenvolvimento de transtornos e patologias. Clientes inconformados ligam impacientes e reclamam despejando toda sua indignação sobre os ombros de atendentes que precisam suportar tudo com diligência, pois estão sob constante vigia de supervisão, muitas vezes abusiva. É assim que o sistema funciona, ele suga a saúde mental de jovens necessitados que absorvem o impacto em lugar de quem realmente tem culpa pelos eventos ocorridos. Beatriz adoece aos poucos enquanto assiste a seus colegas passarem paulatinamente pelo mesmo. É aterrorizante ao ponto de desencadear crises de ansiedade que levam a acompanhamento psicológico e psiquiátrico, assim como uso de medicamentos. E de brinde, o plano de saúde fornecido pela empresa mal cobre o suporte necessário para que os colaboradores possam lidar com sua realidade densa.
Ainda nesse ano de 2021, o Sindicato dos Trabalhadores de Telemarketing (Sintratel) divulgou que cerca de 30% dos teleoperadores apresentam algum transtorno psíquico.
A protagonista e seus colegas apresentam comportamentos estratégicos para tentar amortecer os danos diários do desgaste, mas não é suficiente. E a empresa tem seu sistema de recompensas para quem cumpre metas e trabalha bem, porém é grotesco. Podemos notar que há falhas em todos os sentidos. Christophe Dejours, pesquisador e teórico das áreas de psicodinâmica e psicopatologia do trabalho, afirma que é comum que o trabalhador desenvolva suas maneiras de entregar resultados satisfatórios com maior eficiência, mas a falta de incentivo decente à sua prática correta leva ao adoecimento. Para que haja constância de bons resultados e crescimento ininterrupto no campo profissional, o trabalhador necessita de um conjunto de condições que colabore com sua saúde mental e estimule a criatividade, respectivamente, uma boa equipe de colegas com quem possa dialogar, incentivo financeiro e bônus de lazer, reconhecimento verbal de seu bom desempenho e outros.
A remuneração é ridiculamente baixa, ao ponto de haver necessidade por parte da protagonista de procurar por outros trabalhos paralelos/free-lancers, nos quais ela faz aquilo que realmente ama, que é escrever. Muitas pessoas podem apontar o fato de ela "ser uma guerreira", já a mim salta aos olhos a sobrecarga de trabalho. Beatriz, na realidade, é jornalista com formação superior, mas o mercado de trabalho não a absorveu em sua área. Essa é uma crítica consciente da autora, o que fica muito claro, por mais que a personagem seja competente e tenha um bom currículo, ela chega a perder vaga de emprego para o jogo de privilégios presente em vários lugares e em não raras ocasiões. É frustrante, mas ela não para de tentar, pois estamos tão acostumados com nosso massacre quotidiano que nos adaptamos e seguimos adiante da forma que podemos. Essa é a definição que concerne àquele termo tão na moda por um tempo: resiliência. Larissa retrata a face resiliente do povo brasileiro, que não é assim por poesia, mas por sobrevivência.
Beatriz tem seu grande amigo Jorge como um parceiro de jornada e colega de trabalho que entende como ela se sente na maior parte das situações. Não em todas, pois vemos que Jorge falha em compreender os medos dela em relação à violência praticada contra a mulher no quotidiano brasileiro. Jorge é gay, mas é homem e cis. Um homem gay ainda é um homem e como tal resguarda alguns privilégios que mulher nenhuma (trans ou cis) consegue possuir. Qualquer mulher que vier a ler o livro vai se identificar com Beatriz em relação a isso, pois a violência específica contra a mulher é um espectro social que não cessa.
Essa é uma daquelas noções sociais que o povo vive, mas raramente fala por aí. Ou raramente falava já que a juventude atual tende a ser questionadora, uma vez que teve acesso ao ensino público e até a formação superior de qualidade, que formou pessoas com algum senso crítico.
O livro não falha em retratar a realidade. Tanto que vemos em determinado trecho que um criminoso se compadece da situação na qual a protagonista se encontra. Pode parecer absurdo, mas não é. Muitas pessoas entram para o crime justamente por não haver oportunidades no mercado de trabalho, e continuam tendo todas as capacidades de qualquer ser humano comum. Sei que esse é um debate amplo, mas não quero que passe em branco a complexidade da posição da personagem, onde ela tem medo do crime e ao mesmo tempo consegue dialogar com o criminoso porque ali não há algo de sobrenatural e vilanesco como parece quando retratado em alguns veículos midiáticos. São ações e reações, causas e consequências, vivências e vivências.
A família de Beatriz é seu ponto de apoio, mas não financeiro. O tempo inteiro a personagem vive a pressão pessoal de se sustentar mesmo nas piores condições, pois sente que será um peso financeiro para sua mãe caso alguma agrura a leve a depender novamente da genitora que trabalha em uma das áreas mais ingratas deste país, sendo o trabalho doméstico para terceiros, respectivamente. Beatriz é consciente da condição de sua mãe desde criança, o que fica claro em suas memórias.
E dentro de todo esse ambiente caótico estão os traumas referentes a relacionamentos passados que não funcionaram. Ocorridos que acabaram por minar a autoestima de Bia, que se vê como uma jovem desinteressante para os homens. O tempo todo ela expressa isso, mas não como em um filme adolescente importado qualquer onde a garota faz esse tipo de afirmação por fazer, enquanto vive em padrão de vida elevado, passando por dramas inventados para realçar a "bondade" e "generosidade" do grande príncipe que vai chegar para destacar o quão bela e especial ela é. Beatriz expressa isso porque as circunstâncias da vida fizeram com que ela acreditasse em tal disparate.
A protagonista não fala de figura paterna, pois sua família, como tantas outras no Brasil, tem formato comum nesse país desde tempos passados, onde a mãe é a autoridade central e provedora do lar.
Segundo senso do IBGE de 2010, mais de 30% das famílias pesquisadas tinham a mãe reconhecida como chefe da casa.
Dentro de tudo isso, Beatriz vive um romance leve e com complicações reais, como a necessidade de lidar com traumas ou a situação forçada de precisar tomar decisões difíceis devido à vida profissional de cada pessoa envolvida.
A história de amor é apaixonante e me fez dar boas risadas, pois o timing de comédia é uma das grandes qualidades de Larissa enquanto autora. Qualidade um tanto rara, devo destacar, pois não é qualquer pessoa que consegue extrair boas gargalhadas de quem está lendo uma quantidade tão monumental de drama.
Chegamos, por fim, em dois pontos que considero boas ousadias por parte da autora. Para manter a narrativa mais imersiva e pessoal, ela utiliza os recursos de narração em primeira pessoa e linguagem informal, o que pode incomodar pessoas que se acreditam muito intelectuais da literatura. De minha parte, sendo apenas uma senhorita palpiteira, opino que foi uma boa estratégia. Serve bem para atrair aquele que acredito ser o público alvo dela, mas vai afastar quem tem alergia a gírias e quem tem obsessão pelas velharias clássicas. Amo e defendo aos clássicos, mas ninguém me chama de "vossa mercê" por aí, então vamos admirar o passado, mas caminhando adiante. Como disse a canção, "o novo sempre vem".
Se desejamos que os leitores nos sigam, devemos oferecer caminhos viáveis para que a sedução literária aconteça.
A autora até tem mais obras com escrita um tanto mais rebuscada, porém não são o foco aqui. Como mencionei, são recursos escolhidos.
Rio porque algumas gírias são antiquadas e parecem ter saído dos anos 1980/90 diretamente para 2021, como "irado". Isso é tão divertido que nem sei explicar e acaba sendo uma marca da escrita da autora que coloca em outras obras também. Acho do balacobaco. Identidade é sobre isso, ter seu próprio modo de expressar e ser, independente do tempo ou espaço, apesar de sermos todes filhes de nosso tempo e não há escapatória acerca dessa condição.
Fico feliz pela oportunidade de ler um livro tão sensacional de chick-lit jovem que não deixa a desejar. Penso que será muito benéfico se essa obra chegar às pessoas jovens. Que possa render grandes frutos para a autora que merece elogios.
Recomendo fortemente a leitura dessa obra.
Fontes
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estatísticas de gênero: uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010. In: Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Siocioeconômica, Rio de Janeiro, n. 33, 2014. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=-15,-16,53,54,55,-17,-18,128&ind=4704 > Acesso em: 30 de Dezembro de 2021
Cerca de 30% dos teleoperadores têm transtornos psíquicos. Terra notícias, UOL, Nov., 2021. Disponível em: < www.terra.com.br/amp/noticias/cerca-de-30-dos-teleoperadores-tem-transtornos-psiquicos,dae63c8446979a4f77a2a934b1c9ac2esce8o1v3.html> Acesso em: 30 de Dezembro de 2021
DEJOURS, Christophe. Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho. Revista Cult, e. 139, a. 18, Fev., 2015. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/christophe-dejours-como-reencantar-o-trabalho/> Acesso em: 30 de Dezembro de 2021

Título: Minha Vida Muito Louca Onde comprar: https://www.amazon.com.br/Minha-Muito-Louca-Larissa-Cristina-ebook/dp/B09D5P7VZ4

Instagram: https://www.instagram.com/larissaautora/
Comentários